6 de Outubro – 27º Domingo do Tempo Comum - Ano B
Vivemos na Igreja tempos de intensa reflexão sobre a realidade «família». E os textos da liturgia de hoje podem certamente ajudar-nos nesse percurso.
O relato da criação do Génesis, entre muitos outros possíveis ensinamentos, lembra-nos que o ser humano é um ser social (já o dizia Aristóteles há milhares de anos), nós fomos criados para a relação e não para a solidão. Os filósofos personalistas e a maioria dos especialistas em ciências humanas e sociais também não se cansam de afirmar a importância da relação, da comunicação, para o equilíbrio e a realização da pessoa humana. Nesse sentido, a família, enquanto realidade de comunicação e relação inter-pessoais, é indispensável à vida de quem quer que seja. Por isso, ela não constitui apenas a célula base das sociedades, ela é ambição de todos: quem não deseja viver e ter uma família, qualquer que seja a sua modalidade cultural?
O texto do Evangelho, por seu lado, e em primeiro lugar, defende o lugar e a dignidade da mulher na família, face ao estatuto do homem que era mais protegido e favorecido pelas leis socio-religiosas de Israel nos tempos de Jesus. Mas também poderíamos ver nestas palavras de Jesus, certamente, algo que vai contra a corrente cultural nos nossos dias (a cultura do efémero, passageiro, transitório, descartável): o apostar em relações duradoiras, o investir na persistência, o viver a fidelidade (que é o alimentar do amor no tempo).
E a carta aos Hebreus também diz algo sobre a «família»… já não tanto a família de sangue mas a grande família de toda a humanidade: Jesus é o Filho de Deus, é o nosso grande irmão, todos somos filhos e filhas de Deus, Ele é nosso Pai e Mãe. Este é o verdadeiro sonho e projecto de Deus para o mundo e que Jesus revelou e inaugurou com a proclamação do Reino.
NÃO VOS ABANDONAREI
E, no entanto, parece-me cristianíssima a expressão Deus cuida de mim, porque convoca os seres humanos para cuidarem uns dos outros[1]. Sem esta fé, cada um segue o seu caminho sem olhar para os que precisam de ajuda. Quer em certos livros do Antigo Testamento quer nos textos cristãos, Deus é Aquele que não pode deixar ninguém sozinho porque nos responsabiliza pela situação em que o mundo se encontra, que gasta em armas o que devia gastar em tornar este mundo habitável, cheio de beleza e solidariedade.
A mensagem do Papa Francisco, para este IV Dia Mundial dos Avós e Idosos, começa por aqueles que já não contam e facilmente são descartáveis[2].
Estamos no tempo das férias de Verão que acentuam uma situação que pode percorrer o ano todo. O Papa, na sua Mensagem deste ano, recorda a sua própria experiência. «A molesta companheira da nossa vida de idosos e avós é, com frequência, a solidão. Muitas vezes me sucedeu, como bispo de Buenos Aires, ir visitar lares de terceira idade, dando-me conta de como raramente recebiam visitas aquelas pessoas: algumas, há muitos meses, não viam os seus familiares».
Além disso, as pessoas idosas e doentes, muitas vezes, têm ainda de suportar a acusação de que são elas que impedem o desabrochar da vida dos mais novos. Seriam, assim, responsabilizadas pelos conflitos de gerações. O que se gasta com os mais idosos e doentes seria roubado ao desenvolvimento dos jovens e do próprio país. Contrapor as gerações é um fruto da cultura do conflito.
2. A solidão e o descarte dos idosos e doentes não são casuais nem inevitáveis, mas fruto de opções – políticas, económicas, sociais e pessoais – que não reconhecem a dignidade infinita de cada pessoa.
Hoje, existem muitas mulheres e homens que procuram, de tal maneira, a sua própria realização pessoal, que optam por uma existência autónoma, ligada apenas às exigências da sua carreira ou da sua comodidade. Esta é a marca do individualismo. A passagem do «nós» ao «eu», autossuficiente e distraído dos outros, é sinal de egoísmo.
Como diz o Papa Francisco, a família é a primeira e a mais radical contestação da ideia de nos podermos salvar sozinhos. É, antes, uma das vítimas desta cultura individualista.
Quando se envelhece e à medida que as doenças aumentam e as forças diminuem, a miragem do individualismo, a ilusão de não precisar de ninguém e de poder viver sem vínculos, revela que já não podemos alimentar a ideia de que poderíamos viver sem a ajuda dos outros. Muitas vezes, já é demasiado tarde.
A solidão e o descarte, tão frequentes, têm múltiplas raízes e é fundamental não tratar todas as situações com as mesmas receitas. Nalguns casos, são o resultado duma exclusão planeada, uma espécie de triste «conjura social»; noutros, trata-se infelizmente de uma decisão própria; noutros ainda, fingindo que se trata de uma opção autónoma, não passa de uma ficção criada para tornar suportável essa solidão.
Em qualquer dos casos, é importante não se resignar, mas colaborar com as pessoas que procuram soluções viáveis. Contra a atitude egoísta, que leva ao descarte e à solidão, deve-se contrapor um coração aberto e confiar em quem diz, como na história bíblica de Rute, não te abandonarei![3].
3. Durante muito tempo, costumava recomendar um livro para férias. Gostaria de voltar a esse costume. Para estas férias, recomendo um dos últimos livros do professor de Filosofia da Universidade de Barcelona, Josep Maria Esquirol, A Escola da Alma. Da forma de educar à maneira de viver[4]. A escola da Alma é o mundo.
Importa começar pelas suas notas introdutórias, para não lhe emprestar propósitos que não sejam dele, para não se pensar, pela capa, que seria um livro puramente espiritualista, embora o seu tema seja, de facto, a forma de educar e a maneira de viver.
Começa pelo mundo. Há casa porque há intempérie. E a intempérie pede amparo. Há escola porque há mundo. E o mundo pede atenção. Há casa e há escola porque, no amparo e na atenção, cada um pode fazer caminho e amadurecer para frutificar. Que tipo de fruto? Mais casa e mais mundo.
Uma verdadeira escola é um lugar onde se treina a prestar atenção às coisas do mundo e aos outros. Pode ou não ter o nome de escola. Pode ser uma escola primária, num qualquer lugarejo do mediterrâneo ou um mosteiro budista nas montanhas do Tibete; a escola que Epicteto tinha em Nicópolis, há dois mil anos ou a que, apesar de tudo, continua a acontecer hoje, numa qualquer sala de aula universitária. Como o cultivo da atenção é sempre oportuno e benéfico, poderia haver – deveria haver – escola ao longo de toda a vida. Sobretudo se se tiver em consideração que há coisas que se fazem esperar, como uma revelação do mundo, que costuma acontecer ao cabo de muitos anos.
A escola é antidestino em todos os sentidos. Cria um lugar e um momento onde a família e as origens sociais passam para segundo plano. Porém, como a capacidade de uma pessoa tem muito a ver com as condições sociais, por vezes temos de ir contra a facticidade, principalmente quando ela é desfavorável. A escola é um lugar de igualdade e liberdade básicas.
A vida humana é uma resposta interminável. Na escola pode acontecer um encontro que, ao dar confiança, ofereça também um bom impulso. Educar é ajudar a esboçar alguns nos traços dessa resposta.
Fácil de dizer: educar tem a ver com indicar e iniciar o caminho que conduz à maturidade. E o que é maturidade? Bom, também é fácil de dizer: dar frutos. Todo o ser vivo tende para a maturidade. Mas principalmente, e de forma especialíssima, o humano, porque cedo se reconhece chegado à vida e mortal.
A educação relaciona-se com o processo de amadurecimento das pessoas e, portanto, com o fruto que acaba por se oferecer. Mas, então, cabe perguntar: de que tipo é o fruto principal? E depois, o que é que o faz amadurecer? Descobrir o sabor deste fruto e os elementos mais apropriados ao seu cultivo é encontrar o sentido da educação[5].
A mística deste filósofo é como a teologia do Papa Francisco, uma mística de olhos e coração abertos para toda a realidade.
Boas férias. Até Setembro.
Fr. Bento Domingues in Público, 28/7/2024
Novo vídeo com o testemunho do Fr. José Nunes, OP nos 40 anos da presença dominicana em Angola (Waku-Kungo).
EXPOSIÇÃO
'Dominicanos: Arte e Arquitectura Portuguesa. Diálogos com a modernidade'
A inauguração ocorrerá no dia 14 de Abril, às 16h:00, no Convento de S. Domingos de Lisboa
e estará aberta ao público até ao dia 10 de Junho.
(Folheto AQUI) + (Site do Evento AQUI)
REVISTA DE IMPRENSA
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